Há alguns dias, li um artigo de Wilson Gomes, publicado na revista CULT, e que me chamou bastante a atenção. Ele focaliza a esquerda identitária e a satanização dos que, a grosso modo, dela discordam ou não participam. Vou deixar, no próximo artigo, o link de acesso para quem tiver interesse de lê-lo na íntegra. Faço aqui considerações sobre o texto, que considero pertinentes para o momento de extrema polarização que estamos vivendo. Já adianto que é uma contribuição para o debate, sem ideias pré-concebidas ou excludentes. Andei até conversando com o professor Leonardo Sacramento e tivemos muitas convergências. Considero a esquerda identitária como a mais progressista no campo da esquerda.
Mas o que é a “política identitária”?
Ela não é recente ou exclusiva do Brasil. Já foi objeto de muitas pesquisas e publicações, principalmente em outros países, em especial nos campos da sociologia e da política. É o que no inglês se chama de “identity politics”. Trata-se de uma forma de politização das contraposições entre determinados grupos sociais cujos membros reconhecem que o seu pertencimento é compelido por aspectos da sua identidade. Exemplos são as “comunidades”, como as baseadas em etnia, em deficiências, dialetos, origem geográfica, identidade de gênero, etc. Os movimentos identitários tendem à pulverização extrema, como ocorre, por exemplo, com o Movimento Negro, e a posições quase sempre exclusivistas.
Para Wilson Gomes, “enquanto as lutas identitárias se processam em âmbitos que compartilham os seus pressupostos, como na academia ou no campo da cultura, sobretudo aqueles dominados por valores de esquerda, a posição prospera e gera avanços consideráveis na luta por direitos e por estima social”. Reconhecemos isso e até participamos dessas lutas. É preciso reafirmar que muito se conquistou em termos de direitos sociais com o impulso dos movimentos identitários. Eles podem gerar empatia social para além dos implicados diretamente nas suas lutas. Podem até ocorrer ganhos na transferência de parte da pauta identitária para outros domínios sociais, como o âmbito jurídico ou a esfera pública. Avanços democráticos devem muito aos movimentos identitários. A adoção de políticas afirmativas o comprova.
A bolha sagrada
Foi exatamente isso que aconteceu em nosso país, mais intensamente, entre 2002 e 2016. “Mas quando as lutas identitárias se apresentam para públicos que não compartilham os seus exigentes pressupostos ou não aceitam as consequências implicadas nas suas premissas, é difícil imaginar que possam prosperar”, afirma Wilson Gomes no seu artigo. Em um texto que publiquei nas minhas redes sociais sobre “bolha social, pós-verdade, fake-news e algoritmos”, um amigo foi logo reagindo: “a minha bolha é sagrada, ninguém mexe com ela”. Ele condensou, com maestria, o que geralmente acontece com a maioria dos movimentos identitários.
A meu ver, os problemas começam quando grupos identitários muito coesos e muito engajados na luta contra a opressão estrutural começam a satanizar categorias de opressores. E é aí que o tal homem hétero, cisgênero, branco, cristão, etc. aparece na equação como o “demônio” em comum em quase todos os grupos oprimidos. Para Wilson Gomes, “a palavra-chave aqui é privilégio. O mundo identitário vive da identificação de opressões e de privilégios. Aquele homem é a quintessência da reunião de privilégios, mas a cada um desses adjetivos correspondem privilégios específicos de que participam mesmo pessoas que não os possuam todos de uma só vez”. E esses “privilegiados”, equivocadamente, acabam sendo a maioria da população. E uma maioria que acaba sendo satanizada.
A satanização como comunicação estratégica
No campo político, a satanização do outro é um dos expedientes de comunicação estratégica mais eficazes. A satanização consiste justamente nisto: em demonstrar que o outro deve ser temido, odiado e, se possível, exorcizado. Lutas identitárias fazem definitivamente parte do horizonte político do nosso século. Há boas razões históricas e sociais para que elas existam. Mas toda luta se compõe de tentativas e erros, táticas e estratégicas que se provam eficientes e outras que não levam a lugar algum. Já há vasta bibliografia sobre as consequências das pautas identitárias para a fragmentação da esquerda. Quero continuar este assunto no próximo artigo relacionando a esquerda identitária com o bolsonarismo e com o processo eleitoral.
(Artigo também publicado em 08/08/20 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)
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