“Lá estava o morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide”. Assim João Guimarães Rosa, em 1956, se refere ao morro da Garça na novela “O Recado do Morro”, parte da coletânea Corpo de Baile, uma das suas obras imortais. Para ele, esse morro redondo e isolado na paisagem plana e agreste do cerrado mineiro, como se fosse um cone vulcânico, teria poderes mágicos. Seu Gorgulho, um visionário sertanejo, julga ter recebido dele uma mensagem enigmática. O sertão é, antes de tudo, a terra dos fortes, mas também dos visionários!
História, viagens e devoções
Desde a publicação da obra, o morrão e a cidadezinha do mesmo nome, que lhe fica no sopé, ganharam relevância no meio cultural brasileiro. Suas origens históricas, no entanto, remontam ao século 17, aparecendo na literatura pela primeira vez em Cultura e Opulência do Brasil, de Antonil, pseudônimo do jesuíta João Antônio Andreoni. Ele cita o Campo da Garça como uma das paragens no caminho dos currais que vinha da Bahia para as minas de ouro da região do Rio das Velhas, área central das Gerais. De Antonil a Guimarães Rosa, as viagens são temas recorrentes da literatura.
Ainda é bom lembrar que uma antiga devoção mariana deu nome a uma capelinha que os primeiros moradores ali construíram. Se o morrão era uma maravilha do sertão, o altar pertencia a Nossa Senhora das Maravilhas, mais uma para a minha coleção. Talvez fosse uma devoção tão popular ou tão sertaneja, mas acabou não sobrevivendo até nossos dias. Foi substituída pela Nossa Senhora da Conceição, mais afeita aos controles romanizadores da Igreja Católica. Mas o morrão continua lembrando a santa esquecida.
Descobertas, lembranças de menino e imaginação
Viajar pelo sertão roseano é antes de tudo uma descoberta, já diziam Marily e Dieter, contadores de histórias! E desta vez, também foi. Há alguns dias atrás, fomos eu e alguns amigos a serpentear aquele cerrado onde cada parada é uma grata surpresa. Escalar o morro da Garça era um sonho de menino. E por aí já vai mais de meio século. Cresci vendo no horizonte distante aquela silhueta instigante. E tão perto… Tantas oportunidades perdidas para desafiá-lo. Mas, desta vez, os deuses se confabularam para dar tudo certo. Subimos o morrão!
Trata-se de uma estrutura morfológica circular de 1,6 km de diâmetro, realçada cerca de 350 m acima de uma região extremamente plana no centro-norte de Minas Gerais. Fica acerca de 980 m acima do nível do mar. Lá de cima, descortina-se a visão surpreendente do grande sertão. Imaginei suas veredas por onde circularam boiadeiros e seus berrantes. Imaginei a seca a castigar as árvores tortas mas também o trânsfuga daquelas condições adversas. Imaginei os potentados rebeldes do passado desafiando governos e tropas oficiais.
Tombamento e potencial turístico
Por suas peculiaridades geomorfológicas, aliadas à obra de Guimarães Rosa, que destacaram o morro da Garça como uma espécie de cartão postal da minha terra natal, considera-se tal feição como de notável relevância nacional. Isso a habilita a ser apresentada como um sítio geológico brasileiro por excelência, agora tombado pelo Patrimônio Ambiental e Cultural do município do Morro da Garça. E já se preparando para usufruir o potencial turístico que a geografia, a história e a literatura lhe oferecem no Circuito Guimarães Rosa.
(Texto também publicado no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, em 06/02/2021
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