Já vou logo pedindo desculpas às amigas e aos amigos psiquiatras, mas vale aqui somente a força da expressão para o título deste artigo. É impressionante e assustador como, para muita gente, a realidade factual deu lugar a um mundo paralelo que só existe na cabeça de pessoas muito alucinadas. Nesse mundo, os campos de visão e compreensão se amesquinharam de tal forma que não existe mais lugar para a lógica e a razão. A dissonância cognitiva é tamanha que emprego, família, amigos, futebol, enfim, nada mais tem valor e tudo perdeu o sentido frente à famigerada ameaça comunista. Então, a tal “intervenção militar” é a única salvação que lhes restou… No entanto, proponho: intervenção psiquiátrica já!
É uma questão de saúde mental
Vimos muita bizarrice nas últimas semanas. Começou nas estradas e terminou em frente aos quartéis. O patriota que se agarrou a um caminhão por 22 km, a festa que fizeram no sul para comemorar a fake news da prisão de Alexandre de Moraes, a oração de joelhos em torno de um pneu de trator. Enfim, foram muitas as vergonhas alheias que se transformaram em memes e gargalhadas. Mas uma me tocou em especial: outro patriota de primeira hora, entrevistado por um repórter da França, disse que Macron é de esquerda, que é comunista! O comentarista da TV francesa nem quis dar muita conversa. Seja como for, por trás de tudo isso, a ignorância.
Um artigo de Amanda Serrano, publicado no Correio Braziliense no dia 4/11, aprofundou bem a questão do lado da saúde mental. Ela se reporta à obra “Psicologia das Massas”, do pai da psicanálise Sigmund Freud, escrita em 1921. Escrevo este artigo baseado em suas considerações. Naquela época, a Europa vivia a expansão do fascismo na Itália, e do nazismo na Alemanha um pouco mais tarde. Em suma, o livro é essencial para compreender a composição dos grupos e as maneiras como as pessoas se identificam com suas coletividades e reagem ao diferente. Ele nos ajuda muito a compreender os fatos recentes na eleição presidencial no Brasil.
Bolsonarismo como uma réplica grosseira
Para Serrano, a criação destes grupos de manifestantes se baseia em aspirações e ideais que podem ser articulados em comum. Ela cita a professora de Psicologia e doutoranda pela UFMG, Debora Ferreira Bossa: “Essa lógica é organizadora de nossos laços sociais, e explica como nos identificamos com o grupo, elegendo uma figura de liderança”. Essa figura pode ser personificada, como é o caso de Jair Bolsonaro. “Entretanto, essa mesma lógica pode influenciar atos de rejeição, desprezo, rivalidade, com aqueles que não compartilham das mesmas características que unem tal grupo”, explica Débora.
O historiador Mateus Roque da Silva afirma que o movimento irrefletido das massas não chega a ser uma grande novidade. Para ele, “na Alemanha nazista, por exemplo, não foram homens loucos e mulheres desreguladas que promoveram o holocausto, ceifando a vida de milhares de judias e judeus. Foram homens e mulheres comuns, cegos em seu posicionamento ideológico, que irrefletidamente agiram pelo ódio disseminado”. E completa: “O fortalecimento do bolsonarismo entre nós mostrou-se uma réplica grosseira dos movimentos antidemocráticos do século XX. O sujeito perde sua capacidade de avaliar e sentir, de colocar-se no lugar do outro”. Intervenção psiquiátrica já!
Mas são também uma séria ameaça política
No nosso caso, temos a ameaça do “comunismo”, a “fraude das urnas”, a ameaça da “ditadura gay”, ou então os discursos pró-vida, que criminalizam o aborto sob quaisquer circunstâncias. Tudo isso mostra a contrariedade das pautas, a pouca sustentação intelectual e o desconhecimento desses grupos sobre as dimensões políticas de uma sociedade democrática. “A escolha dessas pautas evidencia a inexistência de coerência com a realidade, e coincidência com as aspirações violentas e hostis individuais, as quais compõem um território promissor para a implantação das fake news”, destaca Débora Ferreira.
“Os atos antidemocráticos e violentos despertados pela situação política do Brasil contemporâneo, leva-nos a questionar sobre o impacto e o efeito que os ideais fascistas ainda estão inseridos nas coletividades, em que a violência e o sentimento de destrutividade passam a ser o organizador do grupo” conclui Débora. No entanto, não podemos ficar só na questão da saúde mental desses grupos. Em síntese, eles são uma ameaça para toda a sociedade. Manchete do Estadão do último dia 16/11 afirma que os órgãos de segurança do Estado, a pedido do TSE, já identificaram que essas manifestações são lideradas e financiadas por políticos, empresários, policiais e ruralistas. Esperemos os desdobramentos.
Este artigo também foi publicado no jornal TRIBUNA na sua edição do dia 19/11/2022.
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