Entrevistei o Mestre Cabide e a Professora Rosana, responsáveis pelo Centro Cultural Isègun, localizado no bairro Antonio Palocci. Eles conversaram comigo, e agora com você, sobre o importante trabalho social e cultural com crianças e adolescentes na periferia da cidade, resgatando as raízes da identidade negra, parte essencial da nossa formação. Veja a seguir, na íntegra, a entrevista publicada pelo jornal Tribuna em 17/06/19.
Professor Lages – Uma vez Ponto de cultura, sempre ponto de cultura. O Centro Cultural Isègun desenvolveu o projeto Dandhara como ponto de cultura entre 2011 e 2013. Foi importante para vocês aquele conveniamento com a Prefeitura e o Ministério da Cultura?
Mestre Cabide: Foi fundamental para a continuidade do trabalho e o aprofundamento do trabalho cultural e social que já vínhamos desenvolvendo. Pudemos diversificar as atividades e os espaços, e hoje temos a sede aqui no bairro Antonio Palocci com atuação também no Avelino Palma, Simioni, Ipiranga e no João Rossi. E agora, mesmo sem financiamento, nós continuamos atuando com este trabalho contando com a colaboração dos envolvidos, sem cobrar mensalidades, mas apenas com o trabalho de todos.
Então vocês aqui acertaram com a sustentabilidade. Tiveram pernas para continuar caminhando mesmo depois de encerrado o projeto. E isso vocês fizeram muito bem aqui, correto?
Mestre Cabide: Exatamente, mesmo que alguns dos nossos agentes culturais da época do ponto de cultura tivessem que se retirar porque precisavam de um trabalho assalariado. O convênio foi muito importante. Veja bem. Nós tivemos jovens arte-educadores, ainda no início de sua vida profissional e já precisavam de uma retaguarda, de um apoio para a sua sobrevivência econômica. E isso foi possível na época do ponto de cultura.
Que atividades vocês desenvolvem no dia-a-dia, tanto aqui na sede quanto nos outros bairros onde vocês têm atuação?
Mestre Cabide: O nosso forte é a capoeira. Mas desenvolvemos também outras atividades como teatro, música, percussão, e também um trabalho bem diferenciado que a Rosana está desenvolvendo agora junto ao Educandário Quito Junqueira e em quatro núcleos da criança e do adolescente. Nesses espaços, ela incrementa vários aspectos da cultura afro-brasileira de acordo com a Lei 10.639 e com os PCNs.
Rosana, vocês sempre tiveram uma pegada muito forte neste resgate da cultura afro no âmbito escolar. Até pela questão de cumprimento de lei, como o Mestre Cabide já colocou. Como está esta questão hoje? Você que já atuou na Secretaria Municipal da Educação, atualmente a rede municipal de ensino tem levado às escolas projetos nesse sentido?
Professora Rosana: Vivemos hoje em total retrocesso. Não existe ninguém desenvolvendo trabalho de educação para as relações étnico-raciais e a Prefeitura não fala sobre o assunto. Não existe uma implementação efetiva da lei. Quando eu estive na Secretaria, lutamos pela regulamentação para a aplicação da lei nas escolas municipais e não conseguimos, apesar da nossa insistência. Hoje, desenvolvo um trabalho de educação não formal junto ao Centro Cultural Isègun em parceria com a Fundação Educandário Quito Junqueira e com quatro núcleos da Secretaria da Assistência Social nos serviços de convivência de vínculo. Trabalho a sustentabilidade étnico-racial dentro dessas instituições. Esses núcleos parecem invisíveis, são esquecidos. A maior parte das crianças atendidas nesses núcleos é afrodescendente. Neste raio de ação do Isègun, trabalhamos esta educação não formal pensando na sustentabilidade planetária deste indivíduo, desse aluno, desse educando, dessa pessoa que está lá.
Mestre Cabide, qual é o público que vocês atendem, que faixa etária? Qual a relação do Isègun com a comunidade, como ela responde às atividades que vocês desenvolvem? As famílias se integram junto com as crianças neste trabalho? E a relação com as escolas, com os professores?
Mestre Cabide: A relação com a comunidade é boa. Basicamente trabalhamos com crianças e adolescentes e com um número menor de adultos. Os pais e mães sempre comparecem e participam das reuniões, apresentações, festividades etc. Com relação às escolas, ocorre certo divórcio. A relação já foi muito melhor. Já tivemos no passado uma abertura muito maior que hoje. Somos solicitados pontualmente. Por exemplo, próximo a 20 de novembro, Dia de Zumbi dos Palmares, chamam para fazermos uma apresentação. Para fotografarem e saírem dizendo que existe um trabalho, que a lei está sempre cumprida. Isso não é verdade. Temos recusado este tipo de participação, porque não é um projeto sério, não há continuidade, é apenas um evento como o vento.
Rosana, como é este lance de gênero dentro do trabalho do Isègun? Hoje, esta questão está na agenda das discussões sociais. Há algum direcionamento nesse sentido no trabalho de formação das meninas e meninos com vocês?
Professora Rosana: Sem dúvida. Temos uma preocupação muito grande no sentido de as mulheres permanecerem na capoeira. Historicamente, há muita desistência das mulheres. Sabemos que existem várias razões para isso. Mas fazemos de tudo para as meninas persistirem e criarem uma cultura familiar de engajamento e liberdade em nossas atividades para que, mais tarde, elas já como adultas, trazerem suas famílias, seus filhos e filhas. Temos aqui várias mulheres já adultas que convivem com muita tranquilidade com todo o grupo. Temos aqui toda liberdade. As minhas filhas foram criadas aqui dentro.
Professor Lages: Mestre Cabide, como anda o Movimento Negro de Ribeirão, principalmente agora com esta nova agenda conservadora implementada pelo governo federal, de claro retrocesso em áreas tão sensíveis como educação e cultura?
Mestre Cabide: O Movimento Negro continua atuante em Ribeirão, contando com grupos engajados que vivem de seus próprios recursos. Mas com relação do Poder Público Municipal, não existe nada. E o panorama é de retrocesso em todos os sentidos. Exemplo disso é a política implementada pela atual gestão na contratação de serviços na área da cultura através de pregão de menor preço. Isso vem inviabilizando as entidades, além de desvalorizar os profissionais e rebaixar a qualidade educação e da cultura. Ganha quem oferecer o menor preço e aí a qualidade vai para o espaço. Não há sequer uma avaliação da qualidade do que está sendo oferecido à população. Material? Não existe. Aparecem verdadeiras entidades fantasmas que ganham o pregão e terceirizam a mão de obra pagando preços vergonhosos. Na capoeira, por exemplo, não existe recursos para a compra de uniformes e outros materiais. O Coletivo Abayomi fez uma roda de conversa recente para debater estes problemas com o recém-chegado secretário da educação. Não podem nos acusar de intransigência e de não querer conversar. Precisamos de parcerias com o Poder Público. Mas as Secretarias também precisam conversar entre si, pois a formação do ser humano é ampla, diversa e plural.