Assisti ao filme Coringa. Não sem antes ler várias críticas e comentários sobre o filme e seu personagem principal. A de Rafaela Gomes no Cinepop me chamou a atenção e me reporto aqui a algumas de suas considerações.
Coringa ou “Joker” é um supervilão fictício, verdadeiro gênio do crime, que aparece nos quadrinhos norte-americanos publicados pela editora estadunidense DC Comics. Foi criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e apareceu pela primeira vez em Batman #1. Mas, agora, o filme não é uma história fácil de
entender. E mesmo de aceitar.
Em várias entrevistas, o diretor Todd Phillips e o protagonista Joaquin Phoenix têm feito questão de não esclarecer as muitas dúvidas do enredo. E talvez essa natureza ambígua e nebulosa esteja de perfeito acordo com um personagem complexo como o palhaço do crime, que tão bem personifica o caos, a intriga e a contradição. Reflexo da própria realidade humana que é complexa. Assim mesmo, há questões importantes deixadas sem resposta pelo longa que exigem uma reflexão mais aprofundada.
Coringa é fruto de uma tristeza profunda na alma de um homem. Como uma figura nascida sem lar e trazida para uma família doentia, ele é o reflexo também de uma sociedade doentia. Sua vida desde o início foi marcada por alienação parental, abusos e abandono. A partir disso, ele constrói uma fortaleza de seu próprio isolamento. Até se esforça, quer ser sociável e gentil. Tem uma fala mansa, olhos confusos e perdidos e uma tristeza inexplicável, que poderiam facilmente compreender aspectos de alguém que sofre de depressão.
Nosso entorno está cheio de seres humanos como o Coringa. Basta procurá-los que vamos encontrá-los, se algum deles ainda não deu uma bofetada em nossa cara. Essa construção complexa de Arthur Fleck é um dos aspectos mais fascinantes da história de origem de um dos maiores vilões das histórias em quadrinhos. Como um agente do caos, ele é introduzido no filme como um fruto desse mesmo caos, um homem comum que tinha sonhos e ambições saudáveis, mas viu todas elas se desvanecerem no vento em virtude da mais completa sensação de exclusão.
O cineasta Todd Phillips nos mostra exatamente isso. Coringa não é uma figura insana sem propósito. Como diz Rafaela Gomes, “ele é uma criação do colapso da sociedade contemporânea, em meio à ruptura de princípios éticos e morais. Como alguém nascido em uma terra sem lei – a Gotham City de 1980, uma clara referência à Nova York do mesmo período (e a própria sociedade em que vivemos ainda), ele surge como o mal necessário, o mártir de uma cidade cujas instituições e sistemas não mais funcionam. E é assim que nasce o palhaço por trás
do singelo homem de ombros caídos e corpo esguio”.
Essa construção tão simbólica e complexa do Coringa faz com que o filme cruze as fronteiras do gênero de adaptação de quadrinhos e se torna de fato uma obra-prima do cinema. Abordando a psiqué humana de Arthur com precisão, o cineasta nos oferece um filme espetacular, roteirizado de maneira estratégica e dirigido com delicadeza e profundidade. Outro lado muito hipnotizante é o físico do protagonista. Cadavérico, seus ossos estão aparentes e saltados molda uma figura assustadora do personagem. Com sua coluna reclinada, ele evidencia a fragilidade de sua forma física, tão frágil quanto a sua alma.
Em um constante contraste entre quem Arthur gostaria de ser e quem de fato ele acaba se tornando, a nova versão do Coringa transforma a essência de uma das figuras mais conhecidas da cultura POP em um símbolo do cinema contemporâneo do mais alto escalão. E Rafaela Gomes conclui: “visualmente belo, o longa ainda conta com uma fotografia urbana cativante, que faz uso de elementos como fogos de artifício e a sombriedade das sujas ruas de Gotham, além de explorar a excepcional linguagem corporal de Phoenix para construir sua beleza plástica”.
Obrigado, Dr. Verri, pela indicação. Valeu muito a pena!
(Texto originalmente publicado em 19/10/19 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)