Em tempos de escola sem partido e homeschooling em frontal ataque à Constituição e à LDB, retorno hoje ao tema da missão da Escola. Antes de tudo, quero hoje resgatar o pensamento de um dos grandes filósofos e educadores franceses do pós-guerra: Paul Ricoeur. A princípio, um detalhe que não pode passar despercebido: ele era cristão, do ramo protestante, seguidor do cristianismo social. Ele escreveu muito sobre a relação entre a laicidade, o Estado e a escola pública. Assim, ele antecipou em décadas uma noção de laicidade escolar que só viria a ser definitivamente reconhecida na França já neste século, com o Relatório Regis Debray. Sim! É ele mesmo! Debray, o guerrilheiro de Guevara, filósofo, escritor e professor francês que defende o ensino dos fatos religiosos na escola pública como área de conhecimento! Vamos ver hoje que escola deve sim ensinar e educar.
Laicidade aberta ao debate e à diversidade
Ricoeur, a princípio, defende a escola laica no sentido de que o Estado também o é, no sentido negativo: “O Estado é neutro porque não tem religião. A escola pública também é neutra porque reflete esta neutralidade por empréstimo”. Mas, para o estudioso, a escola não pode se limitar a esta neutralidade estatal, mesmo que ela até seja necessária. Ele escreve que “a escola estará morta se a sua única laicidade for a desta abstenção, a desta ausência do Estado no grande debate que perpassa toda a cultura ocidental”. Ao ressaltar a diferença entre uma escola da Nação (que inclui alunas e alunos, suas famílias, professorado, sociedade em geral) e uma escola estatal (como simples braço do Estado), propõe que a laicidade escolar deve se abrir ao debate e à diversidade da sociedade civil.
É a escola da Nação que se impõe a uma escola estatal que se pretende neutra, exclusivista e universalista. Esta laicidade viva que ele reivindica para a escola e que qualifica como laicidade positiva de confrontação, colocaria os estudantes na presença de todas as possibilidades espirituais e culturais de seu tempo. A escola, ao mesmo tempo sendo uma instituição do Estado e da Nação, deve articular a laicidade de abstenção do Estado – que é negativa – à laicidade de confrontação da sociedade civil que, sendo positiva, “é uma laicidade dinâmica, ativa, polêmica, cujo espírito está ligado ao debate público”.
A escola deve sim ensinar e educar
Segundo Ricoeur, é esta laicidade de confrontação que “produz, em um determinado momento da história, o desejo de ‘viver juntos’ (o “vivre ensemble!” dos franceses). Isso quer dizer uma certa convergência de convicções, nas situações em que é preciso se chegar a um acordo diante das contradições encontradas”. É preciso, assim, reconhecer que há disputas até insolúveis e, portanto, reconhecer o caráter racional das partes, isto é, a condição de se respeitarem e se aceitarem. E como a escola é parte da sociedade civil, há “uma obrigação de compor com a pluralidade das opiniões próprias das sociedades modernas”. Para isso, a escola deve buscar dois objetivos: o de ensinar e o de educar. Seja como for, educar para o debate.
Se a sociedade é diversa, ela é rica em tradições diferentes e, portanto, a escola é o espaço de encontro uns dos outros. Trata-se aqui da questão fundamental da alteridade. Aprender é socializar a relação com o outro, com as outras culturas. Assim, a escola é o espaço privilegiado para o debate público. Nesse aspecto, Ricoeur argumenta: “Se a laicidade da sociedade civil é uma laicidade de confrontação entre convicções bem distintas, então é preciso preparar os estudantes para ser bons debatedores. É preciso iniciá-los na problemática pluralista das sociedades contemporâneas, talvez trabalhando com eles argumentações contrárias”.
Estamos condenados a viver juntos!
Educar para o debate: este ponto é o grande desafio que devemos destacar hoje para a educação escolar. Não é exatamente isso que é aprender a se situar em um universo pluralista? Não é permitir às alunas e aos alunos socializar a diversidade? Este é o desafio da educação: reforçar a lucidez, proporcionar hábitos e ferramentas intelectuais que ajudem a compreender as implicações de nossa ação. Dar significado a grandes princípios como solidariedade, justiça, democracia, respeito ao meio ambiente e, principalmente, às diferenças. Em síntese: pôr o dedo em nossas contradições e nos aceitarmos uns aos outros, pois estamos condenados a viver juntos!
Este artigo foi publicado originalmente pelo jornal TRIBUNA na sua edição do dia 7 de maio de 2022
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