Nunca simpatizei com Mírian Leitão e muito menos com suas ideias. Não é possível esquecer a sua enorme responsabilidade e de outros arautos da grande mídia na preparação da ruptura democrática de 2016 e com os seus trágicos desdobramentos que vivemos hoje. Mas quando até ela começa a dizer o que tem dito ultimamente, é para lhe dar o mínimo de atenção. Ela é uma porta-voz qualificada do grande capital e suas opiniões servem de termômetro para muita coisa. E quando ela critica abertamente o ultra-liberal Paulo Guedes pelas referências ao AI-5, é porque a coisa está mesmo desandada para os lados dos golpistas que imaginavam poder controlar as consequências do golpe.
Mírian Leitão escreveu na última quarta-feira no jornal O Globo: “o que assusta é o quanto o ministro da Economia desconhece sobre a relação entre economia e política, entre democracia e fatores de risco atualmente avaliados pelos fundos de investimento. Se houver um outro AI-5, ou que nome tenha uma violenta repressão policial militar às liberdades democráticas, os investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização.” As coisas começam por aí a se explicar. As agressões de Bolsonaro à democracia têm um limite. Até para o próprio capital, segundo Mírian.
Deixemos para a Mírian Leitão a relação entre economia e política. Sabemos que essa relação existe, mas para os trabalhadores e os assalariados ela se dá de forma bem diferente das preocupações da comentarista da Globo. Nossa maior preocupação é que Bolsonaro e Guedes saíram das ideias para as propostas. Na mesma semana, o presidente de extrema-direita enviou ao Congresso o projeto de “excludente de ilicitude”, a licença para matar, e logo depois sugeriu a extensão da “Garantia da Lei e da Ordem” para o campo. E Guedes completa, aventando a
possibilidade de um novo AI-5. Está aí a mistura perfeita. É a ditadura pura e simples. Guedes gosta de acusar os críticos do governo de não aceitar o resultado da eleição. Para ele, praticar a democracia é aceitar tudo o que Bolsonaro faz. Ele se esquece de que não existem só dois lados na política. A eleição não é cheque em branco para que a autoridade de plantão possa fazer tudo o que lhe der na cabeça. A crítica é natural e necessária numa democracia, e protestos não significam necessariamente partir para o quebra-quebra. E se por acaso em alguma futura manifestação houver excessos, não é preciso abandonar a democracia. Como já ficou provado
em épocas bem recentes.
Depois da fala de Paulo Guedes ameaçando a oposição brasileira com a edição de um novo AI-5, parece não haver mais dúvidas de que há um novo golpe em marcha no país. Trata-se de uma declaração do titular de uma das mais importantes pastas da administração federal. Sua fala deve merecer a mais veemente reação das instituições democráticas e de todos os cidadãos comprometidos com o regime de liberdade. Sua declaração levanta a suspeita de que um golpe já vem sendo cogitado nos bastidores do Planalto, onde estão sendo gestadas medidas para sufocar eventuais manifestações de rua, inclusive com o uso das Forças Armadas.
Bolsonaro, que se elegeu presidente graças à prisão de Lula pelo seu atual ministro da Justiça, desde que assumiu o Planalto provavelmente já alimentava a possibilidade concreta de governar o país num regime de exceção, onde seus atos não dependeriam da aprovação do Parlamento e nem precisaria se preocupar com o STF. Afinal, como defensor declarado da ditadura e da tortura, é óbvio que ele nunca pensou como democrata, mesmo durante 27 anos como deputado. Diante disso, ao longo deste primeiro ano de governo ele lançou alguns balões de ensaio para sentir a reação as instituições e da sociedade. Fiquemos alertas para os próximos passos.
(Texto originalmente publicado em 30/11/2019 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)