Em nosso último artigo, falamos das agruras de um novo diretor recém-chegado em uma escola da nossa periferia. Um contexto em que o seu papel se confunde, muitas vezes, com o de um bombeiro, literalmente apagador de incêndios. Foi o nosso caso lá nos idos dos anos 2000 no Parque Ribeirão. Eu disse que a alternativa única foi o enfrentamento dos desafios com a união e os compromisso de todos os envolvidos. A gestão precisava ser compartilhada e daí que iniciamos pela criação de uma rede de confiança e cumplicidade. Mas não foi fácil diante das rotinas consolidadas, de cada um cuidando apenas do seu quadrado e de gestões tradicionalmente focadas na burocracia.
Banir barreiras e construir pontes
No entanto, trabalhar com o simbólico pode ter resultados promissores. Melhor ainda quando o simbólico tem uma referência explícita em um cotidiano que todos desejam ver superado. Uma das primeiras iniciativas foi o banimento das grades de ferro que “protegiam” as portas das salas de aula. E para isso marcamos um evento. Foi um café da manhã com alunos, alunas, professores, professoras, pais, mães e lideranças da comunidade. A animação ficou por conta do João Roberto Araújo, do Ribeirão pela Paz. Este movimento cumpriu um papel fundamental naquela época, principalmente junto às escolas, reunindo pessoas interessadas na construção de uma cultura de paz. Paz não cai do céu, se aprende!
Foi dada a senha. E a chamada comoveu corações e mentes. Começamos por fortalecer e responsabilizar os órgãos como o Conselho de Escola, a Associação de Pais e Mestres – APM, o Grêmio Estudantil. As reuniões com os docentes eram frequentes. Decisões cruciais passavam pelo Conselho, até mesmo a escolha do vice-diretor e dos coordenadores. Nada mais era escolha pessoal do gestor. O pedagógico foi se impondo diante da tradição do cumprimento de ditames vindos da Diretoria de Ensino e dos seus supervisores que, aliás, só nos cobravam burocracia.
A missão é o pedagógico
Optamos juntos pelo processo de aprendizagem por projetos, quando todas as áreas de conhecimento trabalhavam em torno de um tema único em cada bimestre. E a finalização desses projetos era um momento ímpar, uma verdadeira comemoração! As salas-ambiente saíram do papel e viraram realidade. Até concorriam umas com as outras! Os estudantes passaram a participar das olimpíadas de matemática. Aliás, a coordenação pedagógica passou a ser realmente pedagógica e acredito mesmo que, com todas as contradições e dificuldades, foi onde mais avançamos naqueles cinco anos.
Parcerias, democracia, participação
A escola começou a se abrir. Na mesma época e a poucos quarteirões dali, um ex-aluno meu do COC, o Cordeiro de Sá, coordenava o CESOMAR (Atual Centro Educacional Marista Ir. Rui). Ele criou a Rede Solidária Local, que envolvia várias instituições do complexo Parque Ribeirão. Nossa escola fazia parte dos encontros e das ações conjuntas, trocávamos informações e experiências. Surgiram várias parcerias. Destaco a Faculdade de Enfermagem da USP que, dentre várias outras ações sociais e pedagógicas importantíssimas, nos doou carteiras tipo universitária que não eram mais usadas mas estavam novinhas em folha. Afinal, a patronesse da nossa escola foi a fundadora da Faculdade de Enfermagem.
Se a comunidade não se sentir responsável e acolhida pela escola, ela se torna indiferente quando não sua inimiga. De repente, o grupo de teatro da paróquia passou a fazer seus ensaios na escola e pequenas igrejas evangélicas também a utilizavam para promover seus almoços e outros encontros de lazer nos finais de semana. E já adianto que não estávamos ferindo o preceito da escola laica e democrática. Inexistem espaços de lazer na periferia. E muito antes da Escola da Família, a nossa escola transformou nossos finais de semana em grandes encontros de esporte e lazer. Ficaram famosas as festas promovidas pela nossa APM, cuja renda era destinada a pequenas obras e serviços de manutenção.
E foi assim que a Escola Estadual Glete de Alcântara foi tomando um novo rumo. Rumo que continuou mesmo após a nossa saída da direção. Resgates como esses são necessários para despertar em nossa memória do que o coletivo é capaz e de como é possível superar adversidades quando se encontra pontos de convergência em benefício de todos. Estes dois artigos foram uma homenagem a todos e todas que, naquela época, sem deixar de ser bombeiros, agiram como obreiros na construção conjunta de uma escola melhor!
(Texto também publicado no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, em 30/01/2021 )
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Leia a primeira parte deste artigo: https://www.professorlages.com.br/historias-de-quem-gosta-de-ensinar-apagando-incendios/