Quando ouvimos falar em quilombo, pensamos imediatamente no mais conhecido deles – Palmares. A princípio, esta foi a mais importante forma de resistência dos negros escravizados encontrada por toda a colônia. Foram centenas, talvez milhares de núcleos de homens livres, e muitos deles chegavam a reunir não apenas negros, mas também indígenas e brancos que lutavam pela sobrevivência. Basta uma rápida pesquisa no Google e logo vamos descobrir que dezenas de comunidades rurais do nosso interior ainda conservam o seu nome de origem – Quilombo! Recentemente, pude perceber que resiste a ancestralidade do povo negro.
Tradição afro, catolicismo popular e sincretismo
Boa parte dessas comunidades se encontra nas Minas Gerais. Apesar disso, não são citadas nos livros didáticos de História. Um estudo mais apurado nos esclarece que os quilombos infestavam o oeste de Minas. Os mais famosos foram os do Ambrósio, do Zundum, do Careca e do Calaboca. O governo colonial organizou várias expedições militares para destruí-los e, como líder dessa carnificina, se destacou o mestre-de-campo Inácio Correia Pamplona. Além disso, este Inácio foi também um dos que fizeram delação premiada (já existia naquele tempo!) e entregou os conspiradores da Inconfidência Mineira.
Tive a felicidade de estar, semana passada, no povoado do Quilombo, município de Carmo da Mata, no oeste de Minas. Participei da festa do tradicional Reinado de Nossa Senhora do Rosário, na verdade uma Congada, expressão cultural típica do sincretismo religioso da ancestralidade afro com o catolicismo popular. Tudo começa na missa conga da sexta-feira à noite. O padre abençoa as coroas, instrumentos de percussão, bastões e tudo o mais que faz parte dessa tradição. Mas o ponto alto da festa são os cortejos dos ternos em homenagem aos santos católicos protetores dos escravizados: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia.
Uma Nossa Senhora só do Quilombo
Moçambiques, catupés e vilões são as manifestações que aparecem no Reinado deste Quilombo de Carmo da Mata, como é conhecido. Cada ritmo expressa o drama vivido pelos escravizados, sua resistência, seu gingado, suas proezas e sua esperança de liberdade. Alguns deles, como os catupés e os vilões podem ter origens remotas entre os povos originários e mesmo na Europa, mas foram ressignificados na resistência da luta contra a escravidão. A Congada é uma tradição que se mantém viva há várias gerações. Em suma, é tão presente no âmbito familiar que as crianças e adolescentes, influenciadas pelos pais e mães, participam ativamente da festa. Resiste a ancestralidade do povo negro.
Diz a tradição do lugar que um escravo esculpiu uma imagem de Nossa Senhora do Rosário na madeira e essa teria sido encontrada em uma gruta bem perto do povoado, lugar de visitação hoje. A imagem se encontra agora na capela de São Sebastião, centro do culto católico do lugar. Mas a cultuam ali como “Nossa Senhora de Santana” que, simplesmente, não existe fora deste Quilombo. Ou é Santa Ana, mãe de Nossa Senhora, ou é Nossa Senhora. Antigas histórias talvez possam explicar essa confusão. Os mais velhos relatam as grandes desavenças entre brancos e negros, depois da abolição. Enfim, talvez fossem os brancos querendo apagar o culto a Nossa Senhora do Rosário. É preciso pesquisar essa hipótese.
Santos negros e santos brancos
Na verdade, São Sebastião nada tem a ver com tradições afro. Pode ter sido um culto dos brancos para suplantar os santos negros, usados pelos escravizados para manter viva sua religião própria, mesmo que de maneira “disfarçada”. De qualquer forma, ali já se perderam as raízes de um autêntico quilombo. Diz a Constituição de 88 que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Nesse caso, essas comunidades se tornam coletivos portadores de direitos etnicamente diferenciados, e a questão da ocupação do território é fundamental para a garantia desses direitos. Este não é o caso do Quilombo do Carmo da Mata.
Pude comprovar, enfim, que nos tempos do corte manual da cana, muitos migraram deste Quilombo para Ribeirão Preto e região, inclusive familiares da minha esposa. E dois lugares de maior concentração deles hoje são justamente o nosso Parque Ribeirão e Cândia, distrito de Pontal. Assim foi com imensa alegria que encontrei vários deles ou seus descendentes no Reinado deste ano. Valeu muito a pena passar estes dias em meio a reis, princesas, príncipes, moçambiques, catupés e vilões. Afinal, entre quilombos e quilombolas, resiste a ancestralidade do povo negro e se mantém viva a tradição afro no interiorzão das Minas.
O jornal Tribuna também publicou este artigo na sua edição do dia 16/09/2023
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