Nessas eleições, o tema da Democracia ocupou um lugar especial. E sabemos que um dos seus pilares é a laicidade do Estado, entendido fundamentalmente como a sua neutralidade diante das diversas crenças religiosas. Esta neutralidade nasce historicamente com a separação entre Estado e Igreja(s). É assustador para qualquer democrata a desenvoltura de grupos religiosos que pretendem tutelar o Estado a partir de suas premissas morais e teológicas. Isso é uma afronta e uma ameaça à democracia, nosso valor maior em termos políticos. A existência de uma denominada “bancada evangélica” é a maior demonstração dessa ameaça. Encontramos coisa semelhante, sim, nos países islâmicos. Uma aberração dessas não condiz com o conceito civilizatório desenvolvido pelo mundo ocidental. Trata-se de um retrocesso querer insistir nesse caminho.
Tenho boas recordações do estágio que fiz em 2015 no Groupe Societés, Religions, Laicités (GSRL) da École Pratique des Hautes Études, em Paris, para estudar exatamente a laicidade do Estado. O GSRL é o maior centro de estudos do mundo sobre o tema. Foi quando consegui uma bolsa sanduíche da CAPES, durante o meu doutorado na Universidade Metodista de São Paulo. O que estudei e aprendi nesse estágio foi fundamental para a minha pesquisa que resultou na tese intitulada “Ensino do fenômeno religioso na escola pública e laica: área de conhecimento necessária para uma sociedade secularizada”. Sou grato a mestres como Philippe Portier, meu orientador, Jean Baubérot, fundador da Sociologia da Laicidade, Jean-Paul Willaime, uma das maioridades autoridades no assunto, Isabelle de Saint-Martin, Philippe Gaudin e até mesmo o lendário Régis Debray.
A laicidade do Estado se apresenta sempre enviesada pelos interesses de grupos fundamentalistas como no caso do projeto “Escola sem partido” e de várias políticas que esses mesmos grupos tentam viabilizar ou obstaculizar, tanto no Legislativo quanto no Executivo. Um equívoco é a afirmação de que a sociedade não é laica. Isso é óbvio, pois este conceito não cabe à sociedade e sim ao Estado. É um conceito político. A sociedade é, sim, secularizada (sem deixar de ser religiosa) no sentido de que a religião deixou há muito tempo de ser o elemento estruturador da ordem social. Os que fomentam um caminho contrário desejam, na verdade, o retorno a um estado Teocrático, como o Irã. Outro equívoco é que o Estado é laico, mas não é ateu. Isso mostra claramente o desconhecimento do assunto. O Estado não tem de ser ateu nem deixar de sê-lo. Se ele é neutro em matéria religiosa, não lhe cabe nenhuma posição quanto a isso. Mas o Estado tem assumido cada vez mais uma posição mediadora exatamente para garantir as liberdades diversas, inclusive a liberdade religiosa. Danièle Hervieu-Léger tem páginas belíssimas sobre este aspecto.
Isso não quer dizer que as religiões tendem a desaparecer ou que Deus já está morto. De forma alguma. Até podemos observar o revigoramento das crenças e sua maior presença no espaço público que entendo ser diferente do espaço estatal que deve ser imune às religiões. Ao mesmo tempo, as religiões se diversificam e se tornam cada vez mais alguma coisa particular de cada um. Do ponto de vista antropológico, a religiosidade é algo inerente à humanidade de cada um de nós. Somos religiosos porque somos humanos. Nesse sentido, as religiões não tendem a desaparecer, elas açambarcam novas concepções e assumem novas expressões, até mesmo independente de suas lideranças e igrejas. Exatamente porque a modernidade não conseguiu dar respostas a todos os problemas humanos, além dela mesma ter criado vários outros.
(Texto originalmente publicado no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)