Era pequeno. Não brincava na praia. Me desculpe pelo plágio, Casimiro de Abreu, mas é para dizer, logo no início dessa prosa, que fui um menino do interior. Em primeiro lugar, mineiro sem ter nascido entre as montanhas. Até os 11 anos, só vi uma montanha no distante horizonte – o morro da Garça. Muitos acreditam que as Minas são só montanhas. Nem todas. Nelas, encontramos todos os relevos. Eu me lembro que, nos repentes em Diamantina, eu fazia parte da turma do Sertão, sempre em rusga com a turma da zona da Mata. Eram nossas “gangues”. Nós, do Sertão sem montanhas, amávamos Curvelo, onde nasci, Corinto, Pirapora, Inimutaba, Três Marias, Felixlândia… Os da Mata sempre falavam bem de Guanhães, Peçanha, Coluna, dos Suaçuís… Ainda mais, para nos separar, o majestoso Espinhaço com o pico do Itambé.
Nasci dentro de uma fábrica
Minha mãe era dona de casa e meu pai, um pequeno comerciante de malas. Ele fabricava e vendia as malas. Antes de mais nada, era uma produção mais artesanal que industrial, sempre tinha uns seis ou sete empregados. Ainda me lembro de alguns: meu primo Toninho, Octávio, Flávio, Ivanir… Passei a infância entre ferramentas e matérias-primas. Em suma, era tudo junto e misturado, lá na avenida Afonso Pena. Há uns cinco anos, voltei à fábrica. Hoje, é um escritório de contabilidade. Meu pai acreditava piamente que só a indústria conduziria ao desenvolvimento do país. Nesse sentido, ele queria fazer a sua parte. Por outro lado, não acreditava muito que escola pudesse melhorar a vida das pessoas. Acho que não chegou a completar o primário. Dessa forma, nunca conseguiu acumular nada e morreu pagando aluguel. Quixotesco…
Seja como for, tive uma infância comum, gostava de brincadeiras como toda criança da minha idade – lembro-me do esconde-esconde, pega-ladrão, chicotinho queimado… Soltar papagaio era o máximo! Fiz o primário em escola pública de qualidade – as Classes Anexas ao Colégio Normal Oficial de Curvelo. Éramos 25 estudantes na turma. Era a norma. Nenhum a mais! E a mistura social era incrível: filhos e filhas do prefeito, do comerciante, do médico, do operário, do ferroviário, do empregado e do desempregado… Tenho vários deles até hoje na minha lista: o Marcelo Palhares, o Dédéco, as duas Elianas, a Bete Becatini, a Joyce. Além disso, consegui descobrir recentemente o paradeiro da nossa professora do 1º ano – a dona Jovita – morando em Luziânia, cidade goiana pertinho de Brasília.
Embalado por Jk e pelo Clube da Esquina
Meu pai era udenista. De origem rural, filho de um ferroviário da Central, ele alimentava a esperança de ascensão social. Os discursos inflamados e reacionários dos políticos da UDN, que ouvia no rádio mas sem muita aderência, motivavam conversas comigo sobre política. Outros assuntos recorrentes eram a guerra fria e a terceira guerra mundial. Mas faleceu em 2020, filiado ao PT, e chegou a ser homenageado em vida como o quinto filiado na cidade. Eu me lembro! Era udenista mas seu círculo de amizades era todo de operários. Ele não saía do Maria Amália, o bairro operário. E quando me levava para as pescarias, acabei fazendo amizade com Oscarzinho, Vicente Primo, Nunas e tantos outros moradores do Maria Amália.
Acredito mesmo que viver entre malas me trouxe um forte senso de deslocamento. Até hoje, as migrações me fascinam! As minhas e as dos outros! Me considero um migrante, talvez o último “entrante mineiro”. Por fim, durante muito tempo carreguei uma daquelas malas de meu pai. A primeira migração foi aos 11 anos, quando fui estudar em Diamantina. Era uma escola centenária, por onde JK havia passado. Ele é diamantinense e, um belo dia, nos visitou junto com o Clube da Esquina. Fiquei cinco anos por lá, tempo suficiente para ter aulas de latim e grego e para ler muitos livros. O ensino médio da época oferecia as opções do clássico, científico e normal. Fazíamos o clássico, e por aí comecei a traçar meu caminho pelas ciências humanas.
Mais forte que o tufão
Diante de tantas histórias, com vitórias e derrotas, a mãe do Casimiro e, talvez, a minha diziam: “Que dura orquestra! Que furor insano! Que pode haver maior que o oceano, ou que seja maior do que o vento?” Nossas mães, a sorrir pros céus, respondiam: “Um ser que nós não vemos, é maior que o mar que nós tememos, mais forte que o tufão! Meu filho, é Deus”. Pois é, aos 11 anos fui ficar mais perto de Deus. Para nunca mais me afastar. Mas não podia imaginar que essa maior proximidade iria abrir caminhos para migrações a plagas mais distantes. E, às vezes, não tão perto dEle! Você talvez não queria que essas memórias terminem aqui. Eu também não. Continuo depois.
Foto: pico do Itambé, na Serra do Espinhaço, na região central de Minas, visto de Diamantina.
O jornal TRIBUNA publicou originalmente este artigo na sua edição do último sábado, dia 26/02/2022.
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