Grande parte da sociedade brasileira oferece uma enorme resistência para admitir a existência do racismo entre nós, mesmo diante de evidências escancaradas. Ainda prefere acreditar no mito da “democracia racial”. Não foram poucas as pessoas que chegaram a dizer que o assassinato do cidadão negro João Alberto Freitas foi hediondo, mas não se configurou como racismo. A lógica dos argumentos destas pessoas foi de que a vítima tinha antes provocado funcionários da loja e que os vigilantes agiram independentemente da raça da vítima. Seria mais um caso de “treinamento inadequado” dos seguranças.
Racismo e estratificação social
Dennis Oliveira, em recente artigo na revista Fórum, lembra que no Brasil, “condições sócio-históricas especiais levaram à racialização das classes sociais desde o início da colonização. Daí, temos o branco como senhor, negro como escravo. Mais tarde, branco como proprietário e patrão e negro como empregado e subalterno”. O racismo entre nós se transformou em uma estrutura de estratificação social. Para os pensadores pós-coloniais, o fundamento de todas as desigualdades no mundo colonizado estão justamente nas relações de raça. Acredito mesmo que aí está uma das razões mais sérias da naturalização do racismo que leva muitas pessoas a não admiti-lo como denúncia e como crime.
Mercado marcado
Depois do trágico acontecimento em Porto Alegre, a repercussão negativa do caso fez as ações do Carrefour sofrerem uma queda de mais de 6%. Sabemos que o mercado de ações pouco está preocupado com racismo, tolerância e valores éticos e morais. O que importa neste cassino é a aposta no crescimento das empresas. A queda nas ações se deveu à percepção de que estes fatos irão provocar um impacto negativo na imagem e, por tabela, no faturamento da empresa, pelo menos no curto/médio prazo.
É importante perceber que a repercussão foi geral e atingiu o mundo lá fora, devido aos protestos em todo o país, campanhas de boicote, entre outros, que colocaram a empresa francesa na defensiva. Há uma crise da marca que terá impactos imediatos na sua rentabilidade. E é isto que teve como consequência imediata a queda no preço das ações. Também foi por isso que a empresa lançou na grande mídia uma série de publicações se comprometendo com medidas concretas no combate ao racismo entre seus funcionários, fornecedores e clientes.
Racismo não é bom nem para o capital
A análise de todos estes acontecimentos é que pode nos indicar a consolidação, ou não, da estrutura racista no Brasil, ou se ela se movimenta para resistir a estas pressões. Sabemos que a cultura corporativa entre nós é extremamente atrasada e resistente em pensar a diversidade como ferramenta de gestão, como ocorre, por exemplo, nos EUA. Aqui, já se admite a formação de ambientes de diversidade como forma de aumentar a eficiência e a produtividade.
Dennis de Oliveira ainda nos lembra que nos EUA e também na Europa, um ambiente corporativo não diverso causa estranhamento aos trabalhadores e isto gera impactos na produtividade. Já um ambiente em que a diversidade está presente, inclusive com mecanismos de gestão dos conflitos internos, não só retira este estranhamento como também gera um conforto e acolhimento que potencializam a produção. Isto tem se revelado uma tendência de gestão empresarial positiva para o capital.
Ainda querem justificar…
No Brasil, condições sócio-históricas, de que falamos, levaram à racialização das classes sociais desde o princípio e transformam o racismo numa estrutura de estratificação social que, muitas vezes, é aproveitada pelo capital como forma de potencializar seu faturamento. Como também afirma Dennis de Oliveira, “o racismo permite, por exemplo, dispor de mão de obra negra em que se pode pagar salários aviltantes e ainda se posar de benemérito porque ‘está dando uma chance’”. E assim normalizam-se posições em que se tenta justificar um homicídio como o que ocorreu em Porto Alegre.
Por esta cultura racista estar solidificada em nossa sociedade é que as empresas ainda tratam a questão da diversidade como tópica, superficial, como simples carta de intenções. Não se sentem ainda pressionadas! O Carrefour tem sete episódios graves de intolerância e violência em um histórico recente, somente no Brasil. Este último foi bárbaro e gerou protestos em todo o mundo. Somente após tudo isso é que as suas ações tiveram uma queda, mas não sabemos até quando. É exatamente isso, o racismo estrutural brasileiro.
(Artigo também publicado em 28/11/20 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)
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