Me desculpe, Rubem Alves, por mais este plágio no título de um artigo, mas não me veio outro melhor para me permitir um remelexo de suas reflexões com o conto de Guimarães Rosa em Sagarana. A analogia inicial vai por conta de termos de espalhar conhecimento em um ambiente à primeira vista hostil. Refiro-me às nossas escolas públicas na periferia das grandes cidades e, na década de 90, Ribeirão Preto não deixava por menos. Para chegar nessa escola onde os acontecimentos de hoje se passam, o busão tinha de atravessar alguns quarteirões de poeira ou lama, dependendo da estação. Por aí já se vê o sacrifício, mas ensinar era uma vocação altruísta.
Na verdade, Sarapalha tem alguma coisa a ver com minhas origens sertanejas, rosiana e arqueologicamente falando. Cresci em meio a histórias de família que se entrelaçavam em algum momento com os parentes do Rosa, naquela mesma Cordisburgo onde meu avô paterno foi chefe da estação e meu avô materno chegou a tocar uma fábrica de manteiga. Há dois anos, quando revisitei, com minha filha e a minha esposa, a Gruta de Maquiné, explorada pelo Dr. Lund, e o Memorial do Rosa, fomos depois almoçar em um típico restaurante de comida mineira e qual a surpresa – o restaurante também se chamava Sarapalha!
A ação de Sarapalha, o conto, se desenvolve sobre um monte de ruínas causadas pela maleita: “Ela veio de longe (…) matando muita gente”. Mas O lirismo dos temas do amor e da solidão transparece em Sarapalha. O contraponto de tempos verbais, passado e presente – o passado relacionado à impotência e à saudade da esposa de um dos protagonistas, o presente ao momento da doença vivido pelos dois primos – contribui para reforçar a atmosfera de dor e isolamento, de claustrofobia, em que se encontram os personagens. Mas indo além do conto para chegarmos em outro presente na periferia de Ribeirão, Sarapalha se transformou em peça de teatro.
Escola tem de ser, antes de tudo, espaço e momento prazerosos. Um lugar onde cultura e entretenimento possam se entrelaçar. As crianças pequenas podem aprender brincando. Os adolescentes, também. Foi por aí que o nosso amigo querido Ricardo Cione levou a encenação de Sarapalha para os alunos de 7ª e 8ª séries. Mas aonde estava o prazer em um conto do Rosa? O conhecimento nos dá prazer, mas na escola, nem sempre as coisas vem coladas ou são automáticas. Aí, vem a necessidade de alguns truques. E foram vários. Deveria acontecer em breve uma excursão a Furnas ou ao Zé Menino, não me lembro bem. E só participariam os que assistissem à peça (em horário inverso ao das aulas) e apresentassem um trabalho orientado pelos professores.
Foi assim que, em meio a truques e a outras traquinagens pedagógicas, a escola foi se transformando em um espaço de inclusão que hoje desperta saudade e inspira novos avanços. Para conhecer e aprender a gostar de Villa Lobos, por exemplo, o querido Jeziel Paiva e seu Quarteto de Cordas nos brindavam com uma tarde de aprendizagem que ia muito além da sala de aula. Mas à noite, naquele mesmo dia, teríamos um baile de espuma que mexia com a molecada naquele tempo e o ingresso era casado: para entrar no baile precisava ter passado pelos acordes do Trenzinho Caipira e das Bacchianas! E a nossa rádio ainda repercutia tudo isso.
Foi assim que naqueles dois anos, entre Sarapalhas e Trenzinhos Caipiras, entre Zé Meninos e bailes da espuma, foi se criando um afeto, um carinho e até uma paixão de todos por uma escola que possuía um histórico de abandono, violência e “curva de rio”. Nem tudo eram flores. Havia os que não gostavam de tudo isso porque dava muito trabalho ou por ter uma visão de educação bancária que contrastava com todo aquele remelexo freiriano. O que veio depois deu asas à continuidade do aprendizado até os dias atuais. Quero dedicar este artigo aos nossos co-professores, nas pessoas do Ricardo Cione e Jeziel Paiva, que tanta alegria e conhecimento nos levaram naquele tempo.
(Artigo também publicado em 02/01/21 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)
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