Um dos movimentos sociais mais fortes na passagem do século foi o das rádios comunitárias. Aqui em Ribeirão Preto não foi diferente. Era uma das grandes esperanças no governo Lula e acabou sendo também uma das grandes decepções (para não usar uma expressão mais forte) quando aquelas emissoras receberam o seu enquadramento legal definitivo. Os petistas devem ter remorso diante deste que poderia ter sido um verdadeiro avanço civilizatório das comunicações deste século no país. Pagaram e continuam pagando muito caro por terem deixado a mídia de rádio e TV como monopólio nas mãos das “seis famílias”.
Lembro-me bem dos embates em Ribeirão Preto, quando alguns corajosos resolveram enfrentar este entulho autoritário do regime de 64. É uma história que ainda precisa ser contada. Eu mesmo cheguei a participar de algumas dessas rádios na região da Vila Virgínia. Lembro-me bem do Toninho, que tinha um comércio de agua mineral na Abílio Sampaio e do Sr. Luiz, que tinha uma fornecedora de gás na Pio XII. Eram o Toninho da Água e o Luiz do Gás, ardorosos defensores do movimento. Mas havia outras na região e eram dezenas em toda a cidade. Era muito barato montar uma rádio comunitária e o Hélio Miranda, do Quintino I, facilitava os pagamentos.
Muitos eram apenas amantes da música e, por aí, acredito que elas faziam parte de um conceito mais ampliado de movimento cultural. Algumas tinham mesmo um caráter comunitário, focando em notícias dos bairros onde funcionavam. O pequeno comércio local as apoiava, mas não era permitido falar em publicidade paga. Eram só apoios culturais! Pequenas igrejas evangélicas também organizavam suas rádios. De qualquer forma, era um movimento que incomodava e tanto incomodava que elas eram taxadas de “rádios piratas” e uma “evidente ameaça à aviação”.
E como sempre gostei de desafios, sugeri a criação de uma rádio comunitária na Escola Municipal Neusa Michelutti Marzola, no Jardim Centenário, quando ali estive como diretor entre 95 e 96. Montamos um processo para obter autorização oficial e que conseguiu parecer favorável do Dr. Feres Sabino que era Secretário de Negócios Jurídicos da Prefeitura. Uma peça jurídica que guardo até hoje com todo carinho. O Prefeito fez questão de ir inaugurá-la e fez a primeira transmissão. A antena foi colocada bem no alto de uma torre e era vista com respeito por todos.
A programação era debatida com toda a comunidade escolar e prevalecia a parte pedagógica. Lembro-me da quinta-feira santa de 96 quando reunimos cerca de 60 pessoas na escola, entre elas muitas lideranças do bairro para fechar a grade de horários. Não me esqueço da presença do Padre João Rípoli. Notícias e avisos da escola chegavam para as famílias pelas ondas da Rádio Neuza. Os estudantes vibravam. Muitas mães vieram me agradecer porque a rádio tinha tirado os filhos da rua! Até hoje, a comunidade escolar tem uma saudosa lembrança da rádio, , como afirmou a atual diretora em uma entrevista recente no programa Conexões Ribeirão (assista o programa aqui).
Mas a rádio durou pouco. Afastei-me da direção devido ao calendário eleitoral daquele ano e, duas semanas depois da minha saída, a nova diretora pediu o fechamento da rádio, depois de ter recebido uma visitinha da Polícia Federal. O Conselho de Escola referendou a decisão. E boca de siri. Ninguém queria comentar o assunto. A rádio incomodava, era gente entrando e saindo, a escola ficava escancarada e seu sucesso incomodava também extra-muros. Nunca se tinha visto aquilo. Foi fechada, pois era uma rádio que contava “histórias de quem gosta de ensinar”.
Em 2001, já como vereador, levei esta briga para a Câmara. Aprovamos a Lei Complementar 1349/2002, criando o Conselho Municipal de Comunicação e de Defesa das Rádios Comunitárias. Que heresia! Fizemos audiências públicas e levamos o debate para o plenário. Defendemos as rádios comunitárias que eram ameaçadas e fechadas pela Polícia. Em um desses embates, até o papagaio foi preso. Enchemos um ônibus de militantes do movimento e fomos a Brasília pressionar o Ministro Sérgio Mota (PSDB) para liberar as rádios comunitárias. Foi uma época de luta para alargar a democracia. Valeu a pena.
(Artigo também publicado em 22/08/20 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)
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