Houve escravidão por aqui sim! E muita. Sem dúvida, estamos diante de um dos mitos mais enraizados da nossa história local, o de que não havia, nos primeiros tempos de Ribeirão, escravos negros por aqui. Já se tentou construir um senso comum de que os nossos primeiros trabalhadores foram os imigrantes europeus. Afinal, esta versão faz sentido a partir da construção ideológica que tenta identificar a pujança do café em nossa região com o espírito capitalista. E a identificação de capitalismo com o estado de São Paulo é um passo só. A princípio, escravidão não combinava bem com progresso e capitalismo!
Racismo, colonização e desigualdade
Trago aqui este assunto, em primeiro lugar, porque o critério racial tem marcado hoje profundamente todos os campos do conhecimento. Trata-se de uma verdadeira revolução. Em segundo lugar, porque esse critério tem impactado fortemente as relações socioeconômicas e políticas das sociedades colonizadas contemporâneas. Não dá mais para desconhecer que a questão racial explica muita coisa em nossos dias. Em especial, os vários eixos de desigualdade humana e injustiça social. Por fim, a História tem um papel fundamental para desvelar o que ainda teima ficar escondido.
Bandeirantium Ager
Borba Gato foi incendiado há alguns dias na capital. O fato levantou boas discussões, em especial no campo da esquerda. Consensual é de que era um carniceiro, assassino de indígenas e quilombolas. Nesse sentido, ele e seus iguais não merecem nenhum tipo de homenagem. Prefiro aprofundar esse assunto em outra oportunidade, quando o calor do debate estiver mais arrefecido. Refiro-me, no entanto, ao Borba Gato para lembrar que a bandeira do nosso município ostenta o “bandeirantium ager” – “terra de bandeirantes”. Também por aqui, em outro momento, já se reverenciou os que levaram sofrimento, escravidão e morte para o nosso interior.
Em nossas escolas, já há muito tempo, não se ensina mais que os bandeirantes foram heróis que trouxeram civilização para o país. Seja como for, se isso ainda acontece, tem de ser imediatamente denunciado! No entanto, o estado de São Paulo continua sendo chamado de estado bandeirante e não apenas porque daqui partiu a maior parte das bandeiras. Voltemos, então, à escravidão em Ribeirão Preto. Antes de tudo, o silêncio a respeito do assunto tem seus motivos ideológicos e classistas. Ele explica a razão de que, até há muito pouco tempo, praticamente fosse quase nula a produção historiográfica sobre o tema.
Escravos como acessórios hipotecados
As fontes são escassas e os dados superficiais, fragmentados e incompletos. Em um trabalho que publiquei na revista Estudos de História, da UNESP de Franca, em 1995, recorri às poucas informações da época e aos registros de hipoteca de imóveis rurais e urbanos da Comarca de São Simão. Eu descobri esses registros em um dos cartórios de Ribeirão. As informações são relativas a São Simão e Ribeirão Preto, entre 1879 e 1888. Enfim, fiz um levantamento do número de escravos hipotecados pelos seus senhores como “acessórios”, juntamente com as terras e benfeitorias das suas propriedades.
Havia 857 escravos em São Simão e Ribeirão Preto em 1873, 663 em 1874, 1.557 em 1885 e 1.379 em 1887 (neste ano, vésperas da Abolição, eram 13,2% da população). A mão de obra escrava crescia entre 1874 e 1885, justamente no momento da arrancada da lavoura cafeeira. Em 1883, a chegada da Mogiana a Ribeirão marcou a implantação definitiva da estrutura necessária para a expansão dessa lavoura. Isso ocorria ainda dentro dos quadros da escravidão. Por outro lado, entre os 387 escravos dos registros de hipoteca, havia a predominância absoluta de trabalhadores homens e adultos. Isso mostra a relação direta com a organização do trabalho na região.
Mitos e meias verdades em torno da abolição
Afirma-se ainda que os proprietários de Ribeirão se anteciparam à Lei Áurea e aprovaram na Câmara Municipal uma lei libertando todos os escravos no município. Mais um mito. Isso, de fato, ocorreu em vários municípios e províncias do império. Não foi só aqui. Não se discutia mais se a escravidão deveria ou não ser abolida. Em suma, a crise de mão de obra era profunda. Passou-se a aceitar a abolição como fato consumado. As divergências entre as classes dominantes e o próprio movimento abolicionista eram apenas a respeito da sua forma, ritmo e profundidade. Era o jogo do poder para não se perder o controle do processo histórico. Afinal, dava-se os anéis para não perder os dedos!
O jornal TRIBUNA publicou este artigo na sua edição do último dia 31/07/2021.
Nota: Para saber mais sobre a escravidão no nordeste paulista, em especial na região de São Simão e Ribeirão Preto, são imprescindíveis os trabalhos do Prof. Dr. Lélio Luiz de Oliveira, da FEA-RP/USP, e da Profª Dra. Luciana Suarez Lopes, FEA-SP/USP.
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