Já fui advertido, certa vez, que promiscuidade é um termo muito forte e que não caberia em muitas situações. Mas não encontro outra expressão melhor para me referir ao último crime praticado pelo “pessoal do porão” que nos governava, como bem disse, recentemente, um dos ministros do Supremo. Promiscuidade que envolve desde uma evangélica despudorada até oito militares que, em vez de cumprirem suas obrigações de caserna, se locupletaram ao poder. A investigação está só no início, mas já mostrou até onde foi, por exemplo, a promiscuidade entre o público e o privado durante o último governo. As joias da Arábia são uma promiscuidade escancarada.
Propina ou apropriação indébita
O escândalo das joias da Arábia atingiu em cheio o bolsonarismo. Enfim, uma sucessão de desculpas esfarrapadas e as revelações cada vez mais cabeludas já deixaram claro que não existe explicação possível. Propina ou apropriação indébita, as joias só poderiam ficar com os Bolsonaro ferindo a lei. É um escândalo que, por sua natureza, tende a produzir grande estrago político. De qualquer forma, é visível, é palpável – não são cifras abstratas e inimagináveis, mas objetos de ouro e pedras preciosas. Afinal, 16,5 milhões de reais é um daqueles presentes que não se dá, a não ser por interesses muito escusos.
Além disso, o caso chega bem na hora que o Partido Liberal, de Waldemar Costa Neto e de Bolsonaro, estava pondo em marcha o plano de projetar Michelle Bolsonaro como liderança política nacional. Sobretudo porque a inelegibilidade de Jair é quase inevitável e ela parecia uma boa aposta. De pronto, reação dela foi dizer que não sabia de nada. Tomou conhecimento pelos jornais. É muita cara de pau. Diante de 16,5 milhões de reais só encontrou a saída de dar uma de mulher traída. Então, como recebeu um presente desses e nem ficar sabendo que recebeu? Como gente desse naipe pode ter alçado aos píncaros da República? Só pode mesmo ser gente do porão! As joias da Arábia são uma promiscuidade escancarada.
Rainha de Sabá ou Salomé? Ou outra Flordelis?
Michellle, entretanto, é mais esperta, mais articulada que o marido, sabe expressar as pautas extremistas de maneira mais “suave”. Ela veste com mais credibilidade a fantasia de cristã e encontra maior receptividade entre as mulheres, público majoritariamente avesso ao bolsonarismo. Como bem lembrou Luís Felipe Miguel no DCM, “as joias sauditas têm botado água nessa fervura. A primeira-dama gananciosa, envolvida em manobras ilegais, que o caso desenha, não combina nada com a serva do Senhor que se apresenta nos cultos evangélicos”. Nesse sentido, uma rainha de Sabá ou uma Salomé. Ou vem aí uma outra Flordelis?
Mas o caso vai muito além de Michelle. Assim também, em meio a essa história de Ali Babá, a imagem dos militares volta a ficar em evidência devido à sua proximidade com o antigo governo. Neste período, pesquisas apontam que houve um aumento significativo na presença militar em cargos civis. Isso nem sempre foi acompanhado de uma percepção positiva, como no caso do general Pazuello à frente do Ministério da Saúde. A participação de militares no episódio se inicia com o fato de que as joias estavam sendo transportadas pelo tenente do Exército Marcos Soeiro, então assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, almirante da Marinha.
Serviço público como baluarte da democracia
A participação direta de militares nas tentativas de liberar as joias dadas à família Bolsonaro mancham a reputação da instituição. “No Brasil, criou-se o mito de que os militares fossem uma casta superior, incorruptíveis e muito técnicos. Esse episódio colocou esse mito em xeque. Há uma exposição muito negativa”, afirma Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra (ESG). “É grave o envolvimento das Forças Armadas com esse episódio das joias porque, no Brasil, elas nunca foram rotuladas como parte de uma chamada ‘cleptocracia’ como vimos em alguns países vizinhos”, explica a pesquisadora da PUC do Rio, Profa. Maria Celina d’Araújo.
Dentre várias lições deixadas por essa história, eu quero aqui ressaltar uma. Não custa lembrar: todo o caso é uma eloquente exaltação ao serviço público brasileiro. Só o funcionalismo público concursado e estável, pode resistir à pressão dos poderosos e garantir a moralidade pública. E assino embaixo o que escreveu Luís Felipe Miguel, ao fechar o seu artigo no DCM, “defender o serviço público é defender a república, a democracia e a sociedade”. O bolsonarismo tudo fez e continua fazendo para destruir o serviço público, mas este resiste! Parabéns aos fiscais da Receita que não se enlamearam nesta história sórdida.
Este artigo foi também publicado no jornal TRIBUNA na sua edição de 18/03/2023
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