Prossigo, aqui, comentando o artigo do professor João Cezar de Castro Rocha sobre o Brasil como laboratório de criação de um mundo paralelo. No Brasil, o bolsonarismo, como fenômeno de massa enraizado em diversos setores da sociedade, é a manifestação de uma onda transnacional que levou a extrema-direita a conquistar o poder, por meio do voto, em vários países. Sem dúvida, foi o que aconteceu nos EUA com Trump e na Hungria com Viktor Orban, exemplos mais notórios. Mas o caso mais recente é Giorgia Meloni, do partido nitidamente fascista Irmãos da Itália, nomeada como primeira ministra naquele país europeu.
“A internet deu voz a uma legião de imbecis”
Antes de tudo, vimos como a criação da dissonância cognitiva coletiva é uma estratégia deliberada, com conteúdo coordenado, estrategicamente produzido para desinformar e fazer circular teorias conspiratórias e fake news. O universo digital e as redes sociais possibilitaram isso e não é casual o fato de que a principal forma de divulgação da extrema-direita bolsonarista sejam as redes sociais e plataformas digitais. Lembro-me de uma declaração polêmica, anos atrás, de Umberto Eco, mas digna de uma profunda reflexão: “a internet deu voz a uma legião de imbecis”. Quase a mesma declaração foi repetida, este ano, pelo ministro Alexandre de Moraes, em um congresso de magistrados, em Salvador.
Extraterrestres fazem parte do enredo
Castro Rocha descreve um episódio, ocorrido em Chicago e retratado no livro “When prophecy fails”, de Leo Festinger. Uma pacata dona de casa, Dorothy Martin, começara a receber mensagens de um extraterrestre, anunciando um dilúvio devastador. Formou-se um grupo em torno dela, que acreditava nas mensagens, a Fraternidade dos 7 Raios. Como a profecia não aconteceu no dia marcado, Dorothy anunciou ter recebido novas mensagens, dizendo que não houve o dilúvio porque a energia positiva concentrada pelos integrantes da fraternidade o sustara. Em outras palavras, em lugar de a profecia fracassar, o fracasso foi racionalizado e seus adeptos se tornaram os salvadores do mundo.
Para Castro Rocha, o que aconteceu em Chicago é o bolsonarismo que temos hoje. Os adeptos da Fraternidade não abandonaram a suas convicções, mas racionalizaram o fracasso da profecia, considerando ter sido a sua ação que teria prevenido a ocorrência do dilúvio. A última frase do livro de Festinger é espantosa e inicia um impacto para o qual o autor não estava preparado, mas que explodiu no século 21: “Eventos conspiraram para oferecer aos membros da seita uma oportunidade verdadeiramente magnífica para que crescessem em números. Tivessem sido mais efetivos, e a fracassada profecia poderia ter sido o começo, não o fim”.
Jovem Pan como grande máquina da desinformação e da mentira
Por fim, Castro Rocha cita, mais uma vez, Leo Festinger: “Um homem convicto é resistente à mudança. Discorde dele, e ele se afastará. Mostre fatos e estatísticas, e suas fontes serão questionadas. Recorra à lógica, e ele não entenderá sua perspectiva”. Se acrescentarmos a essa certeza paranoica o caráter coletivo da poderosa midiosfera da extrema-direita, temos o caos cognitivo transformando-se em realidade alternativa. É o que vivemos no Brasil hoje. Além disso, temos ainda a projeção de um desejo que Freud propôs em ensaio de psicologia social, “O futuro de uma ilusão”. A ilusão como projeção de um desejo. E o desejo é que as teorias conspiratórias e as fake news sejam verdadeiras e sejam confirmadas, por exemplo, pela Rádio Jovem Pan.
A midiosfera extremista é poderosa máquina de desinformação. Para Castro Rocha, aqui, entre nós, ela é composta por cinco elementos: as correntes de WhatsApp; o circuito integrado de canais de Youtube com capacidade tóxica de desinformação; as redes sociais; aplicativos como o Mano, cujo garoto-propaganda é Flávio Bolsonaro; e um aplicativo do Facebook, a TV Bolsonaro. Além disso, há ainda um sexto elemento muito grave. Como metonímia do processo, a Rádio Jovem Pan. Por ela, todas as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista são legitimadas e validadas. Eu mesmo pude conferir recentemente em Brasília, quando, em um único dia, utilizei por quatro vezes, o transporte por aplicativo. Todos os motoristas, todos muito jovens, ouviam a Jovem Pan. Tire suas conclusões!
O jornal TRIBUNA também publicou este artigo na sua edição do dia 03/12/2022
Leia também O Brasil como laboratório de criação de um mundo paralelo (I) e Intervenção psiquiátrica já!
Se você quiser me conhecer melhor, clique em https://www.professorlages.com.br/perfil