Antes de mais nada, adianto que a inferioridade, o desprezo, a aversão e o ódio às mulheres têm, inquestionavelmente, um fundamento religioso. Entre nós, da tradição judaico-cristã, o patriarcado ainda presente em nossos dias, seja em grupos religiosos, seja na sociedade em geral, tem suas referências em vários textos bíblicos. No artigo de hoje, recorro a trabalhos que fiz no curso de pós em Profetismo e Apocalíptica, na Universidade Metodista de São Paulo, para sustentar o que estou afirmando. A princípio, é umbilical a relação entre a absurda misoginia do presente com suas raízes distantes na Antiguidade. É o fio da história que vai perpassando várias culturas e épocas sucessivas. A religião pode explicar o ódio às mulheres.
A aversão ao feminino se enquadra nas políticas da extrema-direita
Antes de tudo, só para lembrar a você, caro leitor e cara leitora, cito alguns fatos recentes do mundo da política, relacionados com o que estou descrevendo. As declarações e ações machistas dos deputados do legislativo paulista – Mamãe Falei, Fernando Cury e Wellington Moura. O escândalo de assédio moral e sexual do ex-presidente da Caixa Econômica Federal Pedro Guimarães. A condenação do presidente Bolsonaro pelo STJ, a pagar indenização à jornalista da Folha, Patrícia Campos Melo, por ofensa de cunho sexual. A derrubada do direito ao aborto pela Suprema Corte nos EUA, depois de 50 anos de sua garantia. A cartilha do Ministério da Saúde afirmando que qualquer aborto no Brasil é crime. Tudo isso se ajusta muito bem ao status da extrema direita no poder.
É lapidar um texto do teólogo Kenner Terra na revista Orácula, em 2008, intitulado “A construção da mulher perigosa”. Ele recorre ao Mito dos Vigilantes, texto apócrifo do primeiro livro de Enoque, do segundo século a.C., e sua influência direta na literatura cristã antiga, incluindo os evangelhos e as cartas. Estes textos apresentam, de forma negativa, a sexualidade e a mulher, como se possuíssem algo exótico, perigoso e até demoníaco. Da mesma forma, é bastante conhecido o texto do Gênesis sobre o pecado original, quando Eva cai na lábia da serpente e desafia uma ordem de Deus. Depois, ela convence Adão de fazer o mesmo. Para quem sobrou a maior culpa? A partir do Mito dos Vigilantes, no entanto, a situação é bem mais complexa. Vamos a ela.
Do mito dos “vigilantes” à misoginia do presente
Qual a origem do medo no poder de sedução da mulher e sua acusação de culpa do mal presente no mundo? De onde vem este medo, encontrado especialmente nas cartas pastorais de Paulo de Tarso, e que muito influenciou todo o Ocidente? Qual o mundo religioso e simbólico por trás das afirmações que pintam a mulher como perigosa, sedutora, que precisa até ser controlada por causa dos anjos, como está escrito em 1 Coríntios 11:10? Seja como for, o Mito dos Vigilantes constitui uma das narrativas fundantes do ocidente. Isso não é nenhum exagero, uma vez que ela influencia muito a forma como o judaísmo e o cristianismo compreendem a origem do mal e do demoníaco no mundo, além do papel representado pelas mulheres.
O mito conta que anjos escolhidos por Deus para “vigiar” (daí o nome vigilantes) o universo foram expulsos do céu. O autor afirma que os vigilantes perderam sua glória celestial, a partir do desejo carnal que sentiram pelas belas mulheres humanas, conforme descrito em Gênesis 6. Induzidos por seu chefe Semeiaza, fizeram um pacto para violar a ordem divina, transando com mulheres humanas e produzindo uma raça de bastardos, os gigantes conhecidos como nephilim (“os decaídos”). Por fim, estes, depois de mortos, gerariam, os espíritos demoníacos. Esses anjos decaídos espalharam a violência entre os homens. Dessa forma, vê-se, claramente, que as mulheres foram instrumentos para a introdução do mal no mundo, uma aliada do demônio.
A mulher como parceira do demônio
Em síntese, o ódio ao feminino perpassou a antiguidade, esteve presente no mundo medieval e até hoje permeia o imaginário de diversas culturas, especialmente o mundo evangélico e boa parte dos católicos conservadores. Se a beleza da mulher serviu para a desestabilização da ordem cósmica, imagina o que ela não é capaz de fazer com a ordem humana. Assim o que gera toda desgraça do mundo, segundo o mito, e funda uma cultura do caos, é a beleza da mulher. Então, como afirma o teólogo John J. Collins, “este mito pode ser lido em épocas diferentes e aplicado em vários momentos de crise. Novas imagens aparecem, dando à narrativa novos contornos. Contudo, as figuras centrais são preservadas e a mulher continua sendo, até nossos dias, a mais demonizada”. A religião pode explicar o ódio às mulheres.
O jornal TRIBUNA publicou também este artigo na sua edição do dia 09 de julho de 2022.
Leia também O aparelhamento do Estado pelo conservadorismo
Se você quiser me conhecer melhor, acesse o link https://www.professorlages.com.br/perfil