A história de qualquer comunidade possui mitos e verdades. Não pretendo aqui entender os mitos como algo pejorativo, “mentiras” que se contrapõe à “verdade” como realidade histórica, mas sim como narrativas de caráter simbólico-imagético de grande importância para a própria história. O mito não é uma realidade independente, mas evolui com as condições históricas relacionadas a uma dada cultura, procurando explicar e demonstrar uma certa realidade, por meio da ação e do modo de ser dos seus personagens. Os mitos fazem parte da vida de toda comunidade.
Fatos históricos podem se transformar em mitos, se adquirem uma determinada carga simbólica, mas é preciso ter consciência dessa transformação. Cabe à História, como ciência, e aos historiadores, como cientistas, promoverem o discernimento entre mitos e verdades. Não é preciso derrubar estátuas, pois corremos o risco de apagar a própria História. O iconoclasta, na sua garra militante contra a dominação, pode anular um dos polos desta relação que não deixa de ser dialética. A consciência histórica da dominação exige que os dois polos permaneçam bem visíveis.
Tinha de ser o centenário!
Os 164 anos de Ribeirão me levam a falar de alguns de seus “mitos” e “verdades”. A começar pela própria data desta comemoração. Ela somente foi definida em 1956 quando era imperioso para a nossas elites promoverem uma grande festa de seu poder. Até o presidente JK se fez presente. Era a época alvissareira do desenvolvimentismo. Tinha de ser o centenário da cidade. O livro “História da História da Fundação de Ribeirão Preto” de Ricardo Barros, lançado quando do Sesquicentenário em 2006, nos esclarece isso muito bem. Seu maior mérito é o formidável resgate que faz da “construção ideológica”, 65 anos atrás, de como teria sido a fundação da cidade.
Fazendo jus ao título da obra, Barros organiza um levantamento minucioso de documentos particulares e oficiais da década de 1950 em torno da polêmica data daquela fundação. Ele esmiúça os argumentos de Osmani Emboaba da Costa, o nosso historiador oficial da época, para quem a fundação aconteceu em 1856, e de Plínio Travassos dos Santos, para quem a mesma ocorreu em 1863. Nenhum dos dois tinha razão. Barros faz uma análise profunda mostrando insuficiências e sutilezas desses historiadores do passado. Não desconsidera os interesses do poder estabelecido cortejando a ciência, no caso a História, na construção de uma história oficial.
(quer saber a data correta? Leia o segundo artigo desta série…)
Bandeirantes, mas só na bandeira!
Os nossos mitos fundantes são exemplares e estão bem estampados nos símbolos do município, a bandeira e o hino. O “BANDEIRANTIUM AGER” – Terra de bandeirantes – quer nos prender indissoluvelmente à saga dos bandeirantes conquistadores e também matadores de índios. Aliás, até o século XVIII, bandeirantes e paulistas eram sinônimos. Não deixa de ser um belo estratagema para esconder aqueles que, de fato, construíram esta urbe: os escravos negros, os imigrantes, os entrantes mineiros e seus descendentes. Resta-nos o consolo de que, de fato, nenhum bandeirante pôs os pés por aqui.
Vai um cafezinho, aí?
Outro mito é o café, com suas ramas na bandeira e sua presença pujante no hino oficial. Ribeirão Preto não nasceu com o café, teve uma longa história antes dele. Considero ainda que uma das pesquisas historiográficas mais revolucionárias sobre a cidade é a de Luciana Suarez Lopes que detalha as principais fontes de renda e despesas do município entre 1911 e 1930, o auge da riqueza cafeeira, a época dos “reis do café”. Ela chega à conclusão que o município era incapaz de gerar recursos suficientes para o seu desenvolvimento, mesmo sendo a “capital do café”. A maior parte da receita vinha do setor de comércio, pequena indústria e serviços que já era forte em Ribeirão Preto.
Os impostos sobre a atividade cafeeira tinham participação ínfima na receita. O município, então recorria, ao endividamento como forma de se financiar. As futuras administrações, inclusive as últimas e a atual, continuam seguindo o modelito. As míseras migalhas dos coronéis serviam para promovê-los como mecenas e beneméritos, mas, na verdade, não veio do café o principal impulso para o nosso desenvolvimento. E a vida segue entre mitos e verdades. A história não oficial também pode ser contada no seu reverso. Ela pode decepcionar e chocar, mas ela é necessária. Necessária para que não se continue cometendo hoje os mesmos erros do passado.
(Texto originalmente publicado em 20/06/2020 no jornal Tribuna de Ribeirão Preto, SP)
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Leia o segundo artigo dessa série: https://www.professorlages.com.br/ribeirao-164-o-marco-zero-fora-do-lugar/
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