Comemoramos este mês o aniversário de Ribeirão Preto. Nessa época, sempre me convidam para dar entrevistas e escrever algo sobre a nossa história. A princípio, aceito e o faço com prazer. Desde minha pesquisa do mestrado, venho esquadrinhando o nosso passado, na esperança de contribuir, de alguma forma, para um presente e um futuro melhores. Dedico este e os próximos três artigos à História da nossa cidade. Desejo focar aspectos das suas origens pouco conhecidas, fatos pitorescos e personagens que, muitas vezes, ficaram à margem, devido às mais diversas razões. Mas quero iniciar por um período em que Ribeirão nem sonhava de existir! Nascemos sob o signo da luta pela terra.
Quem foram os pioneiros?
Uma pergunta que sempre aparece é: “Como e quem foram os primeiros a se estabelecerem nas terras que constituíram, mais tarde, o município de Ribeirão Preto?” Os memorialistas tentaram respondê-la, mas ao arrepio da comprovação documental. Contudo, a descoberta de uma carta precatória, no Arquivo Municipal de Franca, em 1991, pelo pesquisador já falecido Wanderlei dos Santos, deu início ao esclarecimento sobre a formação da rede fundiária de Ribeirão Preto e os primeiros posseiros que a ocuparam. Era um documento de 1834 que afirmava que “uma sorte de terras” se achava em disputa entre duas famílias, Dias Campos (autores) e Reis de Araújo (réus), ambas residentes em Batatais. Nascemos sob o signo da luta pela terra.
Ocupação da terra através da posse
O processo corria no juízo de Mogi Mirim, sede da vastíssima comarca que abrangia todo o nordeste paulista. Mais tarde, ele foi transferido para Casa Branca, quando aquela comarca foi criada. Mas voltemos à carta precatória. Eram dez perguntas do juiz a dez testemunhas, apresentadas pelos autores. Em suma, o objetivo era confirmar, ou não, a posse das referidas terras pelas litigantes. Os Dias Campos chamavam o seu vasto latifúndio de fazenda Rio Pardo. Apresentavam suas confrontações com seus respectivos proprietários, o que vale dizer, já havia outros nos arredores. Os autores afirmavam terem ocupado as terras desde 1811 com culturas e criação de gado, construção de paiol, casas, estradas, cercas e até um porto no rio Pardo!
Aparecem, no documento, os mais antigos topônimos, como as denominações de córregos, que tinham o seus nomes alterados pelos réus para provocar confusão. Eles denominavam, por exemplo, o córrego das Palmeiras de córrego do Campo. A primeira testemunha, Cipriano José da Silva, dizia ser camarada (empregado) dos Dias Campos e ter participação direta nas demarcações. A segunda testemunha arrolada, Miguel Arcanjo da Fé, afirmava que “no sobredito tempo em que o pai dos autores tomou posse da dita fazenda, e esta era sertão baldio, nunca soube ou ouvira dizer que, naquele lugar, tivesse havido outro aposseador”.
Ainda havia muita onça por aqui!
Outra testemunha, João Martinho Lemes, afirmava conhecer a região desde quando “a área era sertão tão que, em muitos lugares, não dormiam à noite fazendo rondas com medo de onças”. Ele dava a entender que a ocupação da região era recente e seria possível já perceber as transformações da paisagem natural devido à presença humana. Por fim, outra testemunha denunciava os réus por terem armado muitas pessoas para os seus projetos de violência, acusando-os ainda de serem costumeiros invasores de terras. Já haviam feito isso, há pouco, com um tio deles mesmos, Vicente Alves. Falava ainda da tentativa de compra da área pelos réus. Segundo ela, os Dias Campos pediram 600 mil réis, mas os Reis de Araújo recusaram.
Mas onde tem fumaça, tem fogo!
Os depoimentos são bastante elucidativos para entender a luta pela terra que ali ocorria. Percebemos como os métodos de pressão e intimidação, ora com recursos à justiça, ora com a violência, são muito semelhantes aos ainda hoje praticados. Todas as testemunhas foram contundentes com graves acusações contra os réus, oferecendo ao juiz informações além das que lhes foram pedidas para confirmar. O juiz de Franca as interrogou, à revelia dos réus, estando presente apenas um dos autores, Hilário Dias Campos, uma espécie de síndico de um condomínio de onze sócios.
Mas onde tem fumaça, tem fogo! Se existia uma carta precatória, é porque existia também um processo judicial que lhe deu origem. Então, durante minha pesquisa para a dissertação de mestrado na UNESP de Franca, saí à cata e tive a satisfação de descobri-lo no arquivo do Cartório do 1º Ofício de Casa Branca, em 1994… Mas fica para o nosso próximo artigo o desfecho deste imbróglio.
O jornal TRIBUNA publicou originalmente este artigo na sua edição do dia 04 de junho de 2022
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